As bilheterias brasileiras e a Sci-Fi
Em seu livro Cinema de Novo – Um Balanço Crítico da Retomada (2003, Estação Liberdade, SP), Luiz Zanin Oricchio defende que o chamado período da “Retomada do Cinema Brasileiro” teria terminado em 2002 com o lançamento de Cidade de Deus (dir: Fernando Meirelles). O marco para o início da Retomada é bastante conhecido: a estreia e o sucesso de público de Carlota Joaquina – Princesa do Brasil (dir: Carla Camurati) em 1995, ano que ainda teve a estreia do também comercialmente exitoso O Quatrilho (dir: Fábio Barreto), que seria indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro no ano seguinte. Ambos os títulos ultrapassaram a marca de um milhão de espectadores cada.
O que Oricchio faz em seu livro é propor que a Retomada era, como o nome indica, um momento transitório. Portanto, precisava ter um fim, um momento em que essa “retomada” se transformaria em “consolidação”. A escolha de Cidade de Deus como o marco de encerramento tem seus motivos: o grande sucesso de público dentro do mercado nacional e sua significativa projeção internacional. Dentro do Brasil, fez 3,3 milhões de espectadores – o maior público para uma produção local em 12 anos. No mercado estrangeiro, arrecadou cerca de 30 milhões de dólares (sendo 7 milhões na América do Norte). O filme ainda recebeu ao menos 67 prêmios em festivais, carreira que atingiu seu ápice com quatro indicações ao Oscar de 2004 (melhor direção para Fernando Meirelles, melhor roteiro para Bráulio Mantovani, direção de fotografia para César Charlone e melhor montagem para Daniel Rezende).
O critério de Oricchio parece fazer sentido: desde então, a produção de filmes nacionais se manteve crescente. Não se pode dizer o mesmo do público, que diminui e aumenta conforme o ano. Porém, mesmo nesse panorama incerto se encontram dados de uma visível consolidação. O ano de 2003, logo depois de Cidade de Deus, foi considerado excelente, com 22 milhões de espectadores; a ele se seguiu um período de baixa, com o maior vale acontecendo no ano 2008 (8,8 milhões de ingressos vendidos, ainda assim superior ao ano do lançamento de Cidade de Deus). A partir de 2009, apesar da grande variação que pode acontecer entre um ano e outro, os números se mantêm acima da casa dos 15 milhões de público anualmente.
Ano | Ingressos vendidos | Variação para o ano anterior |
2002 | 7,8 milhões | |
2003 | 22 milhões | +182% |
2004 | 16,4 milhões | -25,5% |
2005 | 10,7 milhões | -34,7% |
2006 | 9,9 milhões | -7,4% |
2007 | 10,3 milhões | +4% |
2008 | 8,8 milhões | -14,6% |
2009 | 15,9 milhões | +80,7% |
2010 | 25,6 milhões | +61% |
2011 | 17,8 milhões | -30,5% |
2012 | 15,1 milhões | -15,2% |
2013 | 28,1 milhões | +86,1 |
2014 | 19,6 milhões | -30,6 |
2015 | 31,6 milhões | +10,1 |
Dados: Filme B
A maior parte dos filmes nacionais mais bem sucedidos economicamente dentro do mercado nacional são comédias, com alguns filmes de outros gêneros eventualmente surgindo entre os eles – filmes de ação como Tropa de Elite, religiosos como Nosso Lar, cinebiografias como Dois Filhos de Francisco.
Contudo, filmes de outros gêneros populares ainda não tiveram alguma grande produção nacional que atingisse um público mais massivo.
No caso da ficção-científica especificamente, há uma carência de títulos, e essa carência inicial se transforma em carência de público.
Há certa dificuldade de se definir o que é ficção-científica e ela, enquanto narrativa, pode se amalgamar muito facilmente com as convenções de outros gêneros: ação, aventura, fantasia, horror, comédia. Autores e acadêmicos discutem quais são os limites que classificam o gênero. Contudo, há alguns temas que são claramente tradicionalmente identificados como sci-fi: viagens espaciais, viagens temporais, luta homem versus máquina, seres criados pela manipulação errada da ciência, futuros distópicos, contatos com extraterrestres.
Se procurarmos fitas que abordem algo neste sentido, descobriremos que poucas produções nacionais investiram nestes temas desde 2002. Não raro, tentando misturar o aspecto sci-fi com outra demanda de público e propagandeando como outro gênero de maior aceite do consumidor de cinema brasileiro.
Não que os temas de sci-fi sejam novidade para a cinematografia brasileira. Há vários casos de produções espalhadas pelas décadas. Em vários deles, já notamos a tendência de misturar o elemento científico com a comédia, como uma forma de ressaltar o absurdo da sátira. É o caso emblemático de O Homem do Sputnik (dir: Carlos Manga, 1956) ou de produções dos Trapalhões. Também há ficções-científicas sérias, como Abrigo Nuclear (Dir: Roberto Pires, 1981).
No entanto, desde de 2002 até, conseguimos elencar apenas seis produções de longa-metragem que podem ser facilmente associadas ao gênero e que foram lançadas comercialmente:
Em boa parte destes filmes, a ficção-científica não é o elemento central e usualmente aparece como um dispositivo narrativo e não como convenção que classifique o filme. É o caso de Uma História de Amor e Fúria, uma animação com elementos de fantasia que possui apenas em seu ato final uma ambientação distópica; ou como em Branco Sai, Preto Fica, que é centralmente um drama de denúncia social. A Máquina e O Homem do Futuro seguem caminhos parecidos: foram apresentados como comédias com um elemento de sci-fi (em ambos os casos, viagem no tempo) como elemento auxiliar na narrativa.
Levando em conta o desempenho destes títulos no mercado interno, podemos fazer o seguinte ranking:
Pos | Filme | Público | Ano lançamento |
1 | O Homem do Futuro | 1.211.083 | 2011 |
2 | Acquaria | 837.695 | 2004 |
3 | A Máquina | 56.088 | 2006 |
4 | Área Q | 38.739 | 2012 |
5 | Uma História de Amor e Fúria | 30.456 | 2013 |
6 | Branco Sai, Preto Fica | 19.034 | 2015 |
Total de público: 2.193.095 espectadores | |||
Média de público por filme: 365.515 espectadores |
Fonte: O.C.A. – Observatório do Cinema e Audiovisual
Se dividirmos o público total destes filmes em por porcentagens, veremos o tamanho da discrepância entre os títulos. Os dos filmes mais bem posicionados, O Homem do Futuro e Acquaria, correspondem a 93% de todo o público que comprou ingresso para um filme brasileiro passível de ser classificado como sci-fi num período de 13 anos. Ou seja, foram fenômenos isolados (somados, perfazem 2.048.778 milhões de ingressos vendidos).
No caso de Acquaria, o filme foi construído como mais um passo na carreira da dupla de irmãos músicos Sandy & Junior. Além do sucesso na indústria musical, entre 1999 e 2002 eles protagonizaram uma série televisiva na Rede Globo. Mesmo com um público cativo, o desempenho do filme pode ser considerado modesto para o esperado: estreou em 340 cinemas, fez média de 2.463 pagantes por sala.
Em termos de ocupação de mercado, foi a produção nacional com maior lançamento. O segundo maior lançamento, Xuxa Abracadabra, entrou em 307 praças e totalizou 2.214.481 pagantes (média por sala: 7.213). O terceiro maior lançamento foi Maria, Mãe do Filho de Deus, com 303 salas, 2.332.873 espectadores e média de 7.699. Outros cinco títulos do mesmo ano foram lançados em menos salas e obtiveram públicos maiores, como o campeão Carandiru (298 salas, 4.693.853 espectadores, média de 15.751). No ranking dos filmes nacionais daquele ano, Acquaria ficou em 8º lugar.
O Homem do Futuro, contudo, esteve na média próxima dos filmes nacionais bem-sucedidos de 2011 – foi um dos seis títulos a passar da marca de um milhão de espectadores. O foco da sua publicidade era mais nos seus aspectos de comédia, o que pode ter sido decisivo para o seu bom desempenho de público.
Aqui cabe um comentário sobre Nosso Lar (dir: Wagner de Assis). Lançado em 2010, foi um grande sucesso de público, ultrapassando 4 milhões de espectadores. O filme é baseado numa obra religiosa de autoria de Chico Xavier e teve alto investimento na área de efeitos visuais para criar o universo espírita descrito na publicação. Segundo publicações na época do seu lançamento, cerca de 350 planos do filme tiveram inserções de computação gráfica. A empresa responsável pela CGI foi a canadense Intelligent Creatures.
Apesar do design do filme se aproveitar de elementos que o público possa achar familiares aos de uma ficção-científica, é complexo tentar encaixá-lo no gênero. Afinal, o roteiro se baseia num livro religioso e o a adaptação cinematográfica não faz a menor tentativa de esconder o aspecto de pregação e crença em sua narrativa. Então, o filme sequer pode ser considerado como narrativa ficcional, porque há a crença de que ele retrata uma verdade e um fato, ainda que do mundo espiritual, o que dirá científica.
Porém, esses dados não querem dizer que não exista público interessado no gênero dentro das fronteiras nacionais. Para fins de comparação, procuramos os filmes de origem norte-americana lançados nos mesmos anos que os seis exemplos nacionais descritos acima que tiveram maior público e que são classificados como ficção-científica pelo Internet Movie Database (IMDb).
Ano | Filme | Público no Brasil | Ranking no Mercado Brasileiro no ano |
2004 | O Dia Depois de Amanhã | 3.264.034 | 6º |
2006 | X-Men: O Confronto Final | 3.276.585 | 4º |
2011 | Transformers: O Lado Oculto da Lua | 3.134.578 | 11º |
2012 | Os Vingadores | 10.911.371 | 1º |
2013 | Homem de Ferro 3 | 7.633.751 | 1º |
2015 | Os Vingadores: A Era de Ultron | 10.129.071 | 1º |
Fonte: Fonte: O.C.A. – Observatório do Cinema e Audiovisual e Internet Movie Database
Percebe-se nos filmes norte-americanos a característica de junção com outros gêneros. No entanto, ao contrário do nosso exemplo melhor sucedido, O Homem do Futuro, os filmes hollywoodianos que abordam a sci-fi tendem a juntar não tão-somente com a comédia ou com a sátira, mas com outros gêneros populares, como ação e aventura. Percebe-se claramente na lista acima a força das franquias de super-heróis, um subgênero comum dentro do cinema de aventura.
Não se quer apontar com isso que o cinema nacional deva copiar e replicar os parâmetros de qualquer cinematografia estrangeira. Contudo, os públicos dos filmes relacionados na tabela acima mostram que as audiências estão dispostas a assistirem ficção-científica se misturando a outros gêneros que também não exploramos muito. Há um caminho longo que pode ser traçado por iniciativas que procurem encontrar suas próprias direções, através da apropriação e reformulação destes gêneros para as nossas identidades culturais.
Autor: Ulisses da Motta Costa.
Write a Comment